A história da participação das mulheres nas organizações é pouco contada. Em pleno século XXI, elas ainda enfrentam obstáculos para ar áreas na educação e no campo do trabalho, sendo invisibilizadas com linguagem sexista, divisão sexual e racial, desigualdades de gênero, raça e salário. Esse é cenário abordado no livro “Elas nas Organizações – ado, presente e futuro”, da professora de istração da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Susane Petinelli-Souza.
A partir de dados, reflexões e debates sobre os avanços alcançados e os desafios que ainda precisam ser superados no ambiente organizacional, a autora aborda barreiras como estereótipos de gênero, metáforas e síndromes que afetam a experiência das mulheres no mercado de trabalho.
“Notei que não havia nenhuma publicação que tratasse da história das mulheres nas organizações e, ao mesmo tempo, dos problemas que ainda enfrentamos”, explicou a professora. Para conhecer mais a fundo a pesquisa que deu origem à obra, leia a entrevista abaixo.
Houve algum dado que tenha sido particularmente impactante ao longo desse processo?
Os dados são impactantes. Descobri que, somente em 1962, as mulheres brasileiras não precisavam mais de autorização dos maridos para ingressar no mercado de trabalho. Isso me chocou, pois, embora as mulheres tenham sido oficialmente autorizadas a frequentar universidades no final do século XIX, foi apenas por volta de 1960 que elas começaram a frequentar essas instituições em massa. Houve um hiato de 100 anos entre a liberação oficial e a efetiva participação das mulheres na universidade, pois elas precisavam de autorização para fazê-lo. Além disso, os rankings internacionais colocam o Brasil em uma posição alarmante em termos de igualdade de gênero. Esses rankings consideram fatores como a presença de mulheres na política, em cargos de poder, com ensino superior e com igualdade salarial, bem como a questão da violência contra as mulheres. Infelizmente, o Brasil sempre ocupa uma posição desfavorável nesses rankings.
Um dos capítulos é dedicado às mulheres na teoria organizacional, incluindo uma brasileira que teve sua importância negligenciada. O que essa invisibilização nos revela sobre o reconhecimento feminino no campo da gestão?
O padrão que se observa é que, quanto mais baixa a remuneração é, mais braçal é a atividade, maior é a presença de mulheres e mulheres racializadas, incluindo mulheres negras. No entanto, no campo corporativo, a presença de mulheres negras em cargos médios e altos é significativamente menor e diminui ainda mais conforme a cor da pele escurece. Pesquisas brasileiras apontam para um branqueamento na pirâmide organizacional, com um número cada vez menor de mulheres e pessoas negras em cargos mais altos. À medida que se sobe na hierarquia organizacional, a presença feminina se torna rarefeita, e a de pessoas negras é quase inexistente. Isso resulta em uma pirâmide com muitos homens brancos, poucas mulheres brancas e quase nenhuma mulher negra.
No livro, você traz dados históricos sobre a presença das mulheres no mercado de trabalho. Que padrões de exclusão e avanços ficaram mais evidentes nessa análise?
Ao explorar a história, é possível identificar a ausência de mulheres em registros históricos, mesmo em áreas como a gestão pública. As mulheres sempre estiveram lá, mas foram apagadas da história. Por exemplo, poucas pessoas sabem que mulheres istraram capitanias hereditárias no Brasil Colônia. Esse apagamento histórico é comum em livros de história, que tendem a ignorar a participação das mulheres. Hoje, há um movimento em diversas áreas do conhecimento, incluindo história, ciências sociais, educação e istração, que busca resgatar a participação das mulheres na história. É fundamental registrar e destacar a presença das mulheres em diferentes contextos para desafiar a ideia de que elas estavam ausentes ou relegadas a papéis secundários.
As empresas têm procurado transformações para reduzir o abismo entre homens e mulheres no mundo corporativo?
Embora as empresas estejam tentando melhorar a representação das mulheres em cargos mais altos, os dados de pesquisa de 2023 e 2024 no Brasil mostram que o progresso é lento. Comparando-se com pesquisas de 10 anos atrás, é possível ver que a mudança é mínima. Em outros países, o processo de inclusão das mulheres em cargos mais altos parece ser mais rápido. No Brasil, é evidente que existem barreiras que impedem as mulheres de alcançar cargos mais elevados. Uma análise das organizações mostra que os conselhos de istração e diretorias são, predominantemente, ocupados por homens brancos. Embora haja exceções, a maioria esmagadora dos cargos de liderança é ocupada por homens.
Como é a situação da mulher preta? É ainda mais desafiadora do que a da mulher branca?
Em relação às mulheres negras, é importante destacar que, de acordo com o IBGE, as categorias "preta" e "parda" são agrupadas sob o termo "negros". A mulher preta está na base da pirâmide social, frequentemente ocupando cargos de trabalho doméstico remunerado em condições precárias. No mundo corporativo, ela é uma exceção em cargos altos, precisando se esforçar muito mais do que outras para alcançar esses lugares. Pesquisas mostram que, infelizmente, não apenas no Brasil, mas em outros países, a questão racial impacta a contratação e promoção de pessoas negras, mesmo com igual capacitação e formação. Isso reflete a persistência do racismo no mundo corporativo, que se baseia na crença da superioridade de uma raça sobre a outra.
Em questões salariais, as diferenças continuam gritantes ou têm reduzido ao longo dos tempos? Exemplifique.
Ainda há uma grande diferença salarial entre homens e mulheres. Recentemente, foi aprovada uma lei que exige que empresas com mais de 100 colaboradores paguem salários iguais para funções semelhantes. No entanto, há uma forte resistência a essa lei. Um exemplo recente é a CBF, que está se recusando a pagar salários iguais às jogadoras de futebol. Isso é um exemplo de como órgãos que deveriam apoiar a causa da igualdade de gênero estão boicotando a implementação da lei. Essa resistência é vergonhosa e mostra como existem lugares onde os homens não querem que as mulheres tenham os mesmos benefícios que eles. É uma questão que precisa ser abordada e resolvida para que possamos alcançar a igualdade salarial.
Quais são os cargos que elas ainda têm dificuldades de alcançar?
Os cargos mais difíceis de serem ocupados por mulheres são aqueles em áreas tradicionalmente consideradas masculinas, como engenharia, cálculo, física e matemática. Nesses campos, o sexismo é mais acentuado, e as mulheres enfrentam maiores desafios. Dados do Brasil mostram que mulheres na área de tecnologia e informática, mesmo com doutorado, ganham menos do que homens com apenas graduação. Isso é um exemplo de como o sexismo pode afetar a remuneração das mulheres em certos nichos de mercado. Além disso, há uma pressão social para que as mulheres invistam mais em sua aparência, o que inclui gastos com vestimenta, maquiagem e, em alguns casos, procedimentos cirúrgicos. Isso pode ser um fardo financeiro significativo, especialmente considerando que as mulheres já ganham menos do que os homens. Enquanto isso, os homens não enfrentam a mesma pressão para investir em sua aparência, o que pode contribuir para a disparidade econômica entre os sexos. Esse ciclo pode perpetuar a desigualdade econômica entre homens e mulheres.
Quais são os tipos de discriminações machistas que ainda se propagam no ambiente corporativo?
Mulheres mais velhas enfrentam discriminação em relação ao seu comportamento, com estudos mostrando que os homens as percebem como mais agressivas, quando, na verdade, elas estão se tornando mais confiantes e assertivas. Em contraste, homens mais velhos são considerados experientes e sábios, independentemente de sua aparência. Já as mulheres mais velhas são desvalorizadas em sua sabedoria e experiência e podem ser alvo de discriminação se optam por não esconder seus cabelos brancos ou se têm uma postura mais firme. Mulheres jovens, por outro lado, enfrentam discriminação em relação à maternidade, com a crença de que elas são as principais responsáveis pelo cuidado de filhos, idosos e pessoas doentes. Isso levanta a questão da corresponsabilidade e da falta de reconhecimento do trabalho doméstico não remunerado.
A geração Z que está entrando no mercado de trabalho combate a desigualdade de gênero ou mantém o comportamento que culmina na desigualdade?
A geração atual é mais engajada em temas como igualdade de gênero, mas é importante lembrar que nenhuma geração é homogênea e que existem diferentes tipos de pessoas dentro dela. Além disso, há grupos conservadores que defendem que o lugar das mulheres é em casa, cuidando da família, sem carreira ou remuneração. Um problema recorrente que afeta mulheres sem remuneração própria é a separação em idade avançada. Muitas vezes, elas não têm formação acadêmica atualizada, não têm tempo de trabalho registrado e, se adoecem, podem ser abandonadas pelos maridos. Isso pode levar a uma situação de vulnerabilidade, pois elas não têm recursos financeiros próprios e podem ser consideradas "inúteis" para cuidar dos maridos em sua velhice. Embora não seja possível generalizar, existem muitos casos de mulheres que enfrentam essa realidade e são deixadas sem apoio.
A educação pode contribuir para termos um mercado mais igual?
Sim, ensinar para crianças e jovens, depois para adultos que todos nós podemos aprender a cuidar de pessoas, casas e pets, que todos nós devemos ter nossos trabalhos bem remunerados e valorizados e que todos nós devemos ter visibilidade na história, na sociedade e nos diferentes tipos de organizações.
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